É uma casa que está pintada por fora, que foi pintada e engalanada de vez…

25 de abril, um memorando
O 25 de Abril, os saudosistas, a Casa Lobo, e as Invasões Francesas.
Como tudo se relaciona num jogo de prioridades, e como é importante bem ajuizar e decidir – porque o passado não se apaga, e dele muito se aprende…
Senhor Presidente da Mesa da Assembleia
Senhor Presidente da Câmara
Senhores e Senhora vereadores
Senhores Membros da Assembleia
Mortaguenses
Venho aqui, mais uma vez, lembrar a data de 25 de Abril de 1974, que recentemente foi comemorada.
Sessenta anos após a partida do primeiro navio, no caso o Niassa, com tropas para Angola, em 21/04/1961, permitam-me que vos leia um texto que Clara Ferreira Alves publicou no jornal Expresso e que no meu entender, retrata com clareza o Portugal do antes de 25 de Abril.
Passo a citar:
“Anda por aí gente com saudades da velha portugalidade.
Saudades do nacionalismo, da fronteira, da ditadura, da guerra, da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias do Tejo e do Douro, da tuberculose infantil, das mulheres mortas no parto, dos soldados com madrinhas de guerra, da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos espanhóis, do telefone e da televisão como privilégio, do serviço militar obrigatório, do queres fiado toma, dos denunciantes e informadores e, claro, dessa relíquia estimada que é um aparelho de segurança. (…)
Nesse Portugal toda a gente era pobre com exceção de uma ínfima parte da população, os ricos. No meio havia meia dúzia de burgueses esclarecidos, exilados ou educados no estrangeiro, alguns com apelidos que os protegiam, e havia uma classe indistinta constituída por remediados. Uma pequena burguesia sem poder aquisitivo nem filiação ideológica a rasar o que hoje chamamos linha de pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa rua de cidade havia uma mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma capelista. A mercearia vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes pagavam os géneros a prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino e fruta eram um luxo.
A fruta vinha da província, onde camponeses de pouca terra praticavam uma agricultura de subsistência e matavam um porco uma vez por ano. Batatas, peras, maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas e de vez em quando uns preciosos pêssegos.
(…) Como não havia educação alimentar e a maioria do povo era analfabeta ou semianalfabeta, comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas aldeias, para sossegar as crianças que choravam, dava-se uma chucha embebida em açúcar e vinho.
A criança crescia com uma bola de trapos por brinquedo, e com dentes cariados e meia anã por falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande probabilidade de morrer na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância, como beber lixívia. As mães contavam os filhos vivos e os mortos era normal. Tive dez e morreram-me cinco.
(…) Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João Semana fazia o favor de ver os doentes pobres sem cobrar, por bom coração. (…) Os homens (…) batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes que apareciam nos jornais com o título ‘Mulher Mata Marido com Veneno de Ratos’.
As filhas excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos estudiosos eram mandados para o seminário. Os criados nunca dirigiam a palavra aos senhores e viviam nas traseiras.
O trabalho infantil era quase obrigatório porque não havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam a universidade e eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos. Não podiam ter passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande viagem do mancebo era para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam por um império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao estrangeiro era a Badajoz, a comprar caramelos e castanholas. A fronteira demorava horas a ser cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações, era-se maltratado pelos guardas e o suborno era prática comum.
O suborno e a cunha dominavam o mercado laboral, onde não vigorava a concorrência e onde o corporativismo e o capitalismo rentista imperavam.
Salazar dispensava favores a quem o servia. Não havia liberdade de expressão e o lápis da censura aplicava-se a riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos eram punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se saíssem de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o barco da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem a religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte, evidentemente.” (Fim de citação)
Este retrato negro de Portugal do antes de 25 de Abril jamais poderá repetir-se! A liberdade é um bem precioso mas não é um bem eterno! A liberdade e as condições de vida e de trabalho (que, não sendo as ideais, hoje consideramos direitos adquiridos), nem sempre existiram, como foi dito, e se não estivermos atentos, podem voltar a não existir.
Há actualmente grupos comandados por saudosistas do passado que pretendem reverter o que foi conquistado em Abril e construído ao longo destes 47 anos. Estejamos atentos e vigilantes para que Portugal continue na senda do progresso e jamais volte a esses tempos do obscurantismo e da ditadura!
A defesa da Democracia e da Constituição da República são um dever e uma obrigação de todos e de cada um de nós!
Antes de terminar, permitam-me uma breve referência a recente aquisição da Casa Lobo.
Desde já, gostava que ficasse bem claro que não sou contra a sua aquisição. Parece-me, no entanto, que o processo e o momento da sua compra poderiam ter sido mais bem ponderados. Teria sido preferível deixar funcionar o mercado e esperar pelo momento certo, para assim tentar negociar por valores que provavelmente seriam mais modestos.
A sua finalidade está ainda em discussão mas já se admite publicamente que aí venha a ser instalado o Centro Interpretativo das Invasões Francesas! E com essa ideia não poderei estar de acordo.
O atual Centro Interpretativo custou aos Mortaguenses, há pouco mais de três anos, mais de cem mil euros, e não será com certeza boa gestão abandonar a ideia inicial, que, sendo discutível, está implantada e em funcionamento.
A Casa Lobo, fundada em 1860 por Manuel Ferreira Lobo e mais tarde fortemente impulsionada por seu filho Albano Moraes Lobo, foi, além de casa comercial de forte implantação (não só em Mortágua mas também nos concelhos vizinhos), ninho de tertúlias republicanas e fomento de ideias progressistas. A Albano Lobo e a outros Homens Ilustres da época se devem, a título de exemplo, a fundação do Teatro Clube e da Escola Livre de Mortágua. No meu entender, este edifício de comprovado interesse para a história recente do nosso concelho não deve servir para alojar a memória de quem tanto mal fez ao Povo do nosso concelho.
Sobre as Invasões Francesas e a sua passagem por Mortágua, fui à página do Município e copiei o seguinte:
“A Professora Doutora Maria Alegria Marques abordou o tema “Memórias da Guerra no Concelho de Mortágua, 1810”, dando a conhecer registos da época coligidos pelo Padre Joaquim Lebre Teixeira (Arcipreste de Mortágua), que ajudam a compreender os horrores vividos pelas populações, o rasto de morte, destruição e miséria que representou a passagem das tropas francesas pelo território do Concelho. Esse documento tem por título “Relação dos assassinatos, roubos, incêndios e atrocidades cometidos no arciprestado de Mortágua desde o dia 21 de setembro de 1810 até ao dia 4 de outubro pelo exército dos franceses comandados pelo General Massena”.
É um dos poucos documentos que se conhecem que contêm dados e descrições sobre os efeitos da passagem das tropas francesas no concelho de Mortágua.
Não li o referido documento, mas a sua descrição basta-me para reforçar a ideia de que a Casa Lobo terá que ter outra finalidade.
Viva Mortágua
Viva o 25 de Abril!
Viva Portugal!
Mortágua, 30 de abril de 2021
Celso G. Portugal Rosa